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Sexualidade ativa ou celibato? Por Pedro Kupfer

Sexualidade ativa ou celibato?
Por Pedro Kupfer

Sendo o Yoga uma visão que abrange todos os aspectos da existência, a sexualidade não poderia fica de fora. Brahmacharya é o preceito que nos ajuda a viver a sexualidade, seja cultivando-a de maneira compassiva, seja transcendendo-a e renunciando a ela. Porém, antes de entrarmos diretamente nesse assunto, vamos contextualizar o termo em seu lugar de origem: a cultura da Índia.


A palavra brahmacharya pode ser traduzida literalmente como “aquele que está perto do Ser”. Brahman, como o amigo leitor já sabe, é o Ser. Acharya é uma palavra sânscrita que se usa para designar alguém que “está perto”, ou que “conhece as regras”. Traduz-se habitualmente como servidor ou instrutor. Combinando ambas, temos o vocábulo brahmacharya. Brahmacharya é um dos dez pilares do código de conduta do Yoga. Talvez seja o mais incompreendido e que se presta a mais interpretações e distorções. Arrisco-me aqui a dar uma contribuição para, eventualmente, enriquecer a discussão sobre este assunto, que é tão interessante quanto obscuro.



O brahmacharya na cultura indiana.

Existem várias maneiras diferentes de definirmos este termo. No contexto da cultura hindu, ele designa os primeiros anos de vida de um humano. A vida humana é dividida em quatro etapas: estudo, casamento, aposentadoria e renúncia. Idealmente, uma vida humana tem para os hindus 100 anos. Desses 100 anos, os primeiros 20 ou 25 seriam dedicados à formação e ao estudo. Brahmacharya é a palavra usada para designar a primeira dessas quatro fases da vida, na qual o jovem (menino ou menina) está concentrado e dedicado ao estudo e à preparação necessária para conviver na sociedade, absorvendo de seus mestres os valores universais e ensinamentos sobre o dharma.

As outras três etapas chamam-se respectivamente grihasta, quando o jovem casa, constitui uma família e trabalha na sociedade; vanaprashta, quando, uma vez aposentado, o casal se retira para uma vida mais simples, na floresta (a palavra significa justamente “vida na floresta”), e sannyasa, quando a pessoa renuncia à sociedade e se dedica única e exclusivamente ao autoconhecimento e a libertação. Tem algumas pessoas que, recebendo o chamado pela libertação desde cedo, pulam as duas etapas intermediarias, passando da fase de estudo e preparação para a busca da libertação. Essas pessoas, obviamente, não casam nem fazem os demais rituais de passagem destinados aos demais integrantes da sociedade hindu.

Na primeira fase da vida, o menino ou menina não tem idade para se casar ou pensar em namorar. O foco e a energia ficam na preparação para o convívio social, que consiste em aprender sobre si mesmo ou si mesma. É por isso que na sociedade hindu, tradicionalmente, esses primeiros anos de vida excluem todas as formas de sexualidade. Simplesmente, a criança é criança e deve ser tratada como tal. O final dessa fase de formação e estudos coincide freqüentemente com o início da adolescência.



Brahmacharya como castidade.

Por extensão, dado que estudantes não casam, a palavra brahmacharya passou a designar o voto de castidade ou celibato. É com esse significado que esta palavra entra no Yoga. Geralmente, a palavra brahmacharya aparece por primeira vez para os praticantes através da leitura do Yoga Sutra, os “Aforismos de Yoga”, texto atribuído ao sábio Patañjali, que teria vivido nos séculos entre Buda e Cristo e que, de tão famoso e relevante, é considerado uma espécie de Bíblia do Yoga. Nesse texto, brahmacharya é o quarto dos cinco preceitos de conduta chamados yamas.

Porém, traduzirmos brahmacharya simplesmente como castidade, não coincide com a realidade em que vivemos. É necessário eventualmente resignificar essa palavra, uma vez que, se fossemos admitir que o Yoga de Patañjali é unicamente para celibatários, nem a filosofia de vida nem as práticas seriam para pessoas como nós, vivendo nesta sociedade trepidante. Pessoalmente, não conheço celibatários fora da vida monástica. Se a abstinência sexual fosse condição indispensável para se dedicar seriamente ao Yoga, acredito que a imensa maioria de nós, praticantes, teria que deixar o Yoga de lado.

Interpretando brahmacharya como celibato, há pessoas que se opõem frontalmente à atividade sexual com finalidade de se obter prazer. Isto porque, equivocadamente, elas associam prazer com perdição, culpa, pecado ou algo intrinsecamente ruim. Na nossa modesta opinião, negar a validade do prazer é tão equivocado quanto achar que é possível ser feliz satisfazendo os próprios desejos. Outros praticantes colocam a abstinência sexual como a solução ideal para evitar perder os fluidos vitais e conseqüentemente a energia necessária para realizar a tarefa da libertação.

Naturalmente, todos os humanos buscamos o prazer e tentamos nos manter afastados da dor. Não deveríamos cultivar nenhum tipo de remorso ou culpa por termos prazer, desde que isso não fira nem machuque os demais seres. Assumir o contrário se a pessoa não está preparada para renunciar à própria sexualidade, seria ir contra a própria natureza humana. Portanto, talvez a melhor interpretação do termo brahmacharya, desde a óptica dos humanos vivendo em sociedade do século XXI, fosse fidelidade conjugal, coerência relacional e moderação.



Tem outras alternativas?

No Yoga, assim como em muitas outras escolas de vida, considera-se a sexualidade uma força muito poderosa e preciosa. Esta força precisa ser bem administrada e direcionada, e deveria ser usada em função do bem supremo: moksha, a libertação. Trocando em miúdos, isso significa que não deveríamos excluir a sexualidade do caminho de autoconhecimento, nem deveríamos separar o autoconhecimento de todos os aspectos de nossa vida, incluindo-se obviamente a afetividade e a vida sexual.

Para realizar essa integração entre liberdade e energia sexual, existem dois caminhos possíveis: o da abstinência pura e simples, e o da integração construtiva entre a sexualidade e o objetivo do Yoga. Existem diversos e belos exemplos de pessoas santas em todas as culturas, que optaram por não se relacionar afetiva ou sexualmente com seus pares. Não obstante, por conta da força do impulso sexual, a tarefa da abstinência pode ser revelar fora do alcance da maioria dos humanos. É olhando para essas pessoas (dentre as quais me incluo) que devemos reinterpretar a palavra brahmacharya, à luz da situação e das condições em que vivemos atualmente na nossa sociedade.

Para aqueles que consideram que não precisam assumir um voto de castidade, existe uma outra forma de interpretar o principio de brahmacharya. Poderíamos, nesse sentido, traduzir este termo como coerência relacional ou ainda, monogamia. De uma maneira mais ampla ainda, podemos definir brahmacharya como moderação, conduta virtuosa ou refreamento dos desejos. Neste último sentido, transcendendo a dimensão da sexualidade há ainda uma leitura do termo que inclui a frugalidade alimentar e uma dieta vegetariana, em que a prioridade na escolha dos alimentos vai para aqueles produzidos localmente, com o mínimo impacto ambiental.



O brahmacharya à luz do código de conduta de Patañjali.

O pilar central do código ético do Yoga é ahimsa, a não-violência. Todos os demais elementos da conduta do yogi estão em função da não-violência: dela surgem e a ela voltam. Se formos considerar brahmacharya uma das expressões da não-violência, isso implica duas dimensões: na primeira, não devemos ferir ninguém num relacionamento afetivo; a segunda, não devemos nos forçar ou exigir de nós mesmos algo que está além da nossa capacidade. Não machucar os demais é prioridade absoluta na vida de Yoga. Por outro lado, evitar machucar a si mesmo não é menos importante.

Infelizmente, há distorções grandes em ambos os sentidos: praticantes que reprimem as emoções e a pulsação sexual, ao invés de sublimar, e falsos mestres que, alegando a necessidade de “transmutar a energia sexual”, ou arvorando-se em terapeutas, abusam descaradamente da posição de poder em que se encontram. No caso do praticante que interpreta brahmacharya como abstinência sexual forçada, ele recolhe o fruto do seu próprio despreparo na forma de frustração e sofrimento. No caso da pessoa que consciente ou inconscientemente olha para os outros como fontes de satisfação dos seus próprios apetites, ela recolhe o sofrimento dos demais, bem como a própria frustração. Estas formas de conduta são adharmika, contrárias à justiça divina, à justiça social, ao bom-senso, à harmonia e ao bem comum.



Trate os demais como você gosta de ser tratado.

A frase deste sub-título é uma maneira interessante de definirmos brahmacharya. Ninguém, nem dentro nem fora do Yoga, ninguém gosta de ser ferido ou se sentir usado. Portanto, ninguém deveria dirigir atitudes desse tipo aos demais, seja num relacionamento afetivo, seja em qualquer outro tipo de relacionamento. Essa é a base do convívio harmonioso na sociedade, daquilo que se entende como dharma.

Até aí, o amigo leitor pode concordar, mas fica uma pergunta no ar: como agir? Talvez o segredo seja agir sem reagir. Evitar o primeiro impulso é a maneira mais sábia de driblar situações que possam produzir desconforto ou machucar aos demais ou a si mesmo. Isso não vale apenas nos relacionamentos afetivos, mas em todo tipo de situação. Assim, por exemplo, se você sentir que um desejo surge e começa a se manifestar, mas conseguir respirar em silêncio, observando-o na distância até ele se enfraquecer, é bem provável que possa evitar as ações e reações que aconteceriam se você se deixasse arrastar por ele. Namaste!

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